quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

NOWHEREMAN, por Marcele Aires


N O W H E R E M A N
– Você é um bicho, Fabiano. 
Isto para ele era motivo. Sim senhor, um bicho, 
capaz de vencer dificuldades [...].
Aparecera como um bicho, 
entocara-se como um bicho, 
mas criara raízes, estava plantado [...]. 
Estava escondido no mato como tatu. 
Mas um dia sairia da toca, 
andaria com a cabeça levantada, 
seria um homem. 
– Um homem, Fabiano.

 
Quem não leu Vidas secas (1938) na escola, o crrrááássico de Graciliano Ramos, não teve adolescência. Sempre que começo uma disciplina nova no curso de Letras, pergunto qual o livro preferido ou qual o mais lido pelos alunos. E a resposta é quase sempre unânime: Vidas secas
 
Não é de se admirar que o livro tenha sido traduzido a dezenas de idiomas e tão divulgado: é um livro horrível. Porque ele trata da pobreza, da morte e da miséria humana em seu mais cruel estado: a fome.
 
O trecho que abre esse post é tirado, obviamente, do livro. O personagem Fabiano, pai de dois meninos, que nem sequer têm nomes (o Menino Mais Velho e o Menino Mais Novo, estes são os personagens), vive em condições tão precárias, de absoluta indigência, que não pode ser considerado um homem: ele é um bicho, um animal ruminante, que vive como uma besta faminta à procura de seu alimento. A Fabiano e sua família só restam os sonhos. Não fosse o sonho, um homem enlouqueceria em tais condições de desespero.
 
Você, querido leitor, certamente tem uma porrada de sonhos. Quais são? Comprar a casa própria? Trocar o carro? Casar com o Brad Pitt? Ser mãe dos herdeiros do Eike Batista? Viajar pra Nova York e tirar foto em frente à Estátua da Liberdade enquanto a Al-Qaeda ainda não a atingiu? Brincadeiras à parte, todo mundo sonha. Mas e Fabiano, quais os seus sonhos? Seriam seus sonhos como os nossos?
 
A resposta, todos sabem: NÃO. 
 
O sonho de Fabiano é a sobrevivência.
 
Tudo bem. Vidas Secas foi escrito em 1937-38. Já se passaram mais de setenta anos de sua publicação e é bem verdade que a realidade do Nordeste mudou. É bem verdade que o Brasil cresceu e etc. E é inclusive verdade o discurso mais masturbación que “somos a sexta potência mundial nos dias de hoje segundo o Centre for Economis and Business Research, sediado em Londres, e...”.Aaaaaaaaaaa!!!!

 
Eu, sinceramente,  cagando pra esse discurso. Porque a pobreza não foi embora. Ela reside nesse país. E no mundo. De acordo com o relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o número de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia nos 49 países mais pobres do mundo – principalmente na África – mais do que duplicou nos últimos 30 anos, chegando a 307 milhões, o que equivale a 65% da população. As estimativas são de que este número pode chegar a 420 milhões em 2015. 
 
E eu com isso? 
 
Poizé. É aí que entra o trabalho do Rubens. E é exatamente nesse ponto nevrálgico que Nowheremannos pega pelo braço, dá-nos aqueles beliscões doídos e a quem concordar em abrir os olhos, ficam os roxos na pele...
 
Nowhereman trata-se de um álbum de figurinhas. Até aí, o leitor deve estar se perguntando: “Mas essa Marcele bebe álcool de cozinha, por que o que é que tem a ver pobreza, fome e etc. com álbum de figurinhas?”.
 
Aí é que o leitor se engana: ao artista plástico, tem tudo a ver. Durante seu Mestrado, iniciado em 2009, Pileggi colheu inúmeros depoimentos de mendigos no centro do Rio. Os depoimentos e as imagens se transformaram no álbum de figurinhas Nowhereman, lançado ano passado na galeria Museu do Mundo, no Rio. O próprio artista comenta sobre seu trabalho: 

Um álbum de figurinhas é um objeto irônico, 
porque colecionávamos figurinhas dos nossos heróis, 
de produtos e lugares, na nossa infância, mas colecionar 
mendigos, acolher moradores de rua em nossa casa 
– ainda que desse modo – cria uma inversão na posição do espelho, 
sempre posicionado para refletir a melhor de nossas aparências. 
Por outro lado, parece algo de idealista, também. 
Não seriam os mendigos dignos de serem pensados como gente? 
A resposta parece óbvia, mas a prática se mostra diferente.
 
Eu já acompanhava o trabalho do Pileggi pela net. Mas numa certa tarde, quando eu saía de casa pra minha corrida, uma surpresa: na caixinha do correio o álbum, que o artista carinhosamente me enviou (trocamos livros). Qual não foi a minha surpresa ao abrir o envelope e perceber que as figurinhas que completavam as páginas em branco eram de pedintes, de moradores de rua, dos excluídos, dos miseráveis, que pouco se diferem do Fabiano-bicho criado pelo Graciliano há mais de 70 anos (e somos "a sexta economia mundial"! Rá! Rá! Rá!).



 
 
Coloquei aqui algumas imagens de moradores de rua retratados no álbum, só mais por uma caracterização visual do que eu tô descrevendo. 
 
A dimensão do álbum é muito mais grandiosa e quem quiser conferir esse trabalho do Pileggi, eis o site:

http://figurinhasnowhereman.blogspot.com
 
Uma das grandes sacadas do álbum é que, ao comprar os pacotinhos das figurinhas, você contribui com uma refeição para os moradores de rua.
 
Bem, eu cheguei até aqui para falar da “Clara Nunes”, que será a personagem do meu conto a seguir. Já aviso: o conto, obviamente, é ficcional. Mas a Clara Nunes não. Ela existe.
 
Esta senhora, que não sabe a própria idade e diz ser procedente do “Estado do Céu”, falou em depoimento ao artista que tem um sonho: “Fazer bolo de batata, de chocolate”.
 
Bem, acho que nem preciso gastar mais o meu latim para explicar por que eu me apaixonei por ela. 
 
Quando as aulas recomeçarem, agora em fevereiro, pegarei uma turma iniciante. Esse ano não trabalharei com os quartos anos nem darei a disciplina que aaaaamo: “Literatura Brasileira Contemporânea” :-(  Mas será uma delícia trabalhar com o primeiro ano, cruzinho (olha o "r" no meio! Hehehe!) porque ministrarei a disciplina de Prática de Escrita. E quando eu for tratar não apenas do “gênero Poesia”, mas do “Poético” na Literatura e nas Artes, já sei quem vou usar como mote...
 
Simples assim. Porque a Clara Nunes é poesia andante...

Boa leitura do conto pra quem fica. E não deixem de visitar o site do Rubens. Ele é incrível. Outros links dele:

TEXTO DE MARCELE AIRES PUBLICADO NO BLOG "A VEIA NO PULSO" DIA 25 DE JANEIRO DE 2011 EM:
http://aveianopulsoainda.blogspot.com/2012/01/nowhereman.html

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