quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Clara Nunes ou Felicidade clandestina


Clara Nunes ou Felicidade clandestina

Criava as mais falsas dificuldades para aquela 
coisa clandestina que era a felicidade.  
A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. 
Parece que eu já pressentia. Como demorei! 
Eu vivia no ar... 

(Clarice Lispector em Felicidade clandestina)


O domingo se afogava em calor. O céu, ao lusco-fusco, escancarava sua áurea lilácea, riscado por linhas alaranjadas, numa beleza quase obscena. A essência dos matizes tropicais do crepúsculo entumecia seu corpo, como se o fluxo da vida corresse insano em suas veias. O mundo se abria em delicadeza. 

A mulher exibia então um sorriso largo, incontrolável, denunciando seu estado de felicidade apurada. Via-se que ela resplandecia! E não era para menos: aquele domingo lhe cabia, era seu bem por direito. Primeiro, era domingo, e bastava ser domingo para ser feliz, pois nada de trabalho, nada de atender aos telefonemas dos clientes, anotar recados, terminar o croqui da decoração da casa de Fulana, verificar os orçamentos do papel de parede com abacaxis e pássaros do restaurante de Cicrano. Nada disso. Era domingo e pronto. Ninguém a lhe importunar. Aquele domingo era seu. Pertencia-lhe. No entanto, o contentamento se ampliava porque estava amando. E isso era bom, ah!, muito bom. Anos e anos curando a humilhação do rechaço provocado pelo noivo bígamo... Natural que ficasse em estado de espera – numa inércia que somente os solteiros com certa dignidade entendem como funciona. Jamais saíra por aí procurando um novo noivo X ou um marido Y, como pessoa que não suporta a própria solidão. Noivo Y comprado em catálogo de produtos eletrônicos, formado, barba aparada, sapato de design italiano. Nada disso. Tudo aconteceu no compasso da vida. No tempo do tempo. E esse novo homem, era, certamente, um lance de sorte, motivo de ventura, alegria, afinal, parecia ter esperado todos esses anos para estar ao lado de alguém exatamente como ele. É bem verdade que vivia apenas um começo: como poderia saber se o homem descabelado era realmente tão especial? Ou não demoraria ao estilhaço do estereótipo, construído em platonismos no eco de sua cachola? O homem perfeito haveria novamente de se espatifar em mil pedaços? De antemão, sabia a resposta, mas preferia arriscar, como naquela música do Baden: “Ah, não existe coisa mais triste que ter paz / E se arrepender, e se conformar / E se proteger de um amor a mais”. 

Pois que se danassem a insegurança, as neuroses, os empecilhos: aquele fim de tarde, lindo, era um de seus haveres; era sua posse, e ela, a mulher, estava apaixonada! A felicidade cortava-a com seus graves punhais de doçura! 

Quando o homem chegou e buzinou, seu sorriso espalhou-se janela afora, lançando-se à rua, às difusas ruas do mundo e a todas as vibrações positivas do Cosmos. Saiu correndo. Largas pulseiras de madeira adornavam-lhe os braços, tilintantes conforme ela lançava os longos braços em direção ao sofá, pegando a bolsa de couro cru. 

Ao abrir o portão, notou a expressão de satisfação do homem: “Nossa, mas como você está bonita!”, ele a elogiou, dando-lhe, em seguida, um beijo na bochecha direita. “Linda e cheirosa!”, complementou o galanteio sincero. E realmente estava: a pele morena evidenciava-se ainda mais pelo branco do vestido de algodão e renda renascença. Era um vestido simples, mas da simplicidade que transforma toda mulher em um ser admirável, de aparência cruamente elegante. Ou de aparência elegantemente crua. Como preferir. Os cabelos encaracolados caiam-lhe pelos ombros, ressaltando a omoplata dura, evidente como um tronco na água. Nos lábios, batom vermelho, do feitio das grandes divas do cinema. Sempre ouvira os conselhos da mãe: “Olha minha filha, todas nós carecemos guardar nosso tesouro de feminilidade. Seja num broche, numa flor, no batom”. E ela, a mulher, seguia os ensinamentos maternos com estética caprichada – não apenas porque era uma arquiteta, mas como quem sabe sacralizar o feminino. 

Do caminho de casa ao cinema ouviram Nara Leão e Tom Jobim, conversaram sobre a festa animada da noite passada, riram do estado alcoolizado do amigo que voltava ao Brasil depois de cinco anos na Alemanha, falaram sobre comida, futebol, preço da gasolina e horóscopo. Ao chegarem ao centro da cidade, deram sorte e encontraram uma vaga próxima ao cinema Lumière. Em cartaz, filme novo do Almodóvar, abarrotado de elogios rasgadérrimos da crítica. A ordem do dia era descontração: inicialmente o cinema, depois tomariam uma cerveja trincando para amenizar o calor e quem sabe esticariam a noite na rede, ouvindo Beatles aos nada opressores beijos de janeiro.  

Tudo parecia exalar perfeição. O céu maravilhado em beleza, daquelas que se tem dificuldade de descrever pelo tom hiperbólico. Para completar a cena, pássaros voavam rentes às árvores e a sinestesia se fechava, em ouro e pratas, com o canto alucinado das cigarras em tarde de verão. 

A fila do cinema se alongava, mas nada que quinze minutos de espera não resolvesse. “Assim é até bom”, pensou. “A gente namora na fila, faz cafuné!”. Afinal, aquele domingo não era um domingo qualquer.

A recôndita desarmonia que circunda todas as coisas...

Devido ao calor, tomava, em goladas grandes, uma garrafa d’ água. Como não havia lixo por perto, resolveu ir até a esquina se desfazer do conteúdo plástico. Era daquelas que procura lixo, não sai emporcalhando as ruas – embora soubesse que enfiar garrafa em lixo urbano era apenas mais um modo de varrer o lixo para debaixo do tapete. “O que os olhos não vêem...”. 

O namorado ficou, como bom cavalheiro, guardando lugar na fila. 

Ao chegar à imensa boca do lixo, o destino parecia lhe abrir as portas, como as mãos do mordomo de uma mansão imponente: aquele era um lixo tipo caçamba, típico do brasileiro que insiste em enchê-lo de entulhos, garrafas PET, comida, fralda descartável, caixas de papelão, material de construção, entre outros elementos contundentes da poluição.  

Ao se preparar para lançar a garrafa fora, reparou que dividia o espaço com uma mendiga. Era uma mendiga franzina, negra, já idosa, que trajava roupas estropiadas, gastas, rasgadas. Nos pés, chinelo. Na cabeça, o assessório que a deixava com o mesmo ar de diva que ela, a mulher, pensava, até então, ostentar absoluta: um turbante branco, na cabeça. Naquele minuto singular, veio-lhe a imagem de Nina Simone: “Negra. Linda. Como a diva”, conjecturou... 

Contrastando com seu cheiro de perfume cítrico, a outra fedia. Era o fedor de gente que não sabe do regozijo do sabonete, do banho morno pela manhã. Era fedor inerente à pele, como calendário a denunciar, a não deixar esquecer, a atroz realidade de quem vive e dorme nas ruas. O cheiro da outra era seu RG, seu CPF, o aval que enfatizava sua imanência social.  

Como se lhe abrisse um clarão, a mulher se via arrebatada pelo momento epifânico: enquanto ela jogava sua garrafa no lixo; a outra enfiava, sedenta, os braços na caçamba, em busca de algo. Seria comida? Podia não ser objeto de comer – o que tornaria a cena ainda mais drástica e humana –, contudo mergulhar os braços na caçamba não era exercício dos mais prazerosos, como enfiar os braços no mar e avançar em direção ao enredado. Primeiro, a outra tirou uma sacola de vegetais. As moscas rondaram, em zunidos transtornados, suas mãos sujas. Como não encontrou o que lhe apetecesse, despejou a sacola de volta e se pôs a abrir outras, como quem confia que, em breve, tomará posse de sua recompensa. Naqueles segundos que não passam e parecem guardar a chave de um relance de eternidade, a mulher compreendeu, humildemente, que ambas eram mulheres. Sim, lá estavam duas mulheres, dividindo o mesmo espaço. Abismou-se com a “hipócrita civilidade” do ato: duas mulheres, habitantes urbanas, comungando o espaço do lixo. É bem verdade que cada uma com seu devido propósito: ela, livrando-se do lixo; a outra, aceitando e bendizendo o podre, como um apóstolo na mesa do Cristo. 

Um aperto lhe envergou a nuca, como se as doces punhaladas de felicidade dessem lugar a um sentimento ruim, de egoísmo e alienação misturados à impotência. Pois quinze segundos lhe estapeavam a cara e já não era mais a mesma pessoa, de um piscar de olhos atrás, que contemplava o pôr-do-sol e o homem. 

Lentamente, ia perdendo a vontade de contemplar o céu. A culpa lhe corroía. Lembrou-se, então, de uma vez, quando a irmã, professora, contara o caso de um dos alunos, tão pobrezinho, que ia à escola porque lá encontrava a ração diária. Sim, uma criança passava por aquilo. Aquilo que ela conhecia como fome; e que a outra, a andarilha, também conhecia como fome. Porque bastava ser homem para se ter fome. Então ter fome era remexer no lixo, era mergulhar os braços no sujo, no fétido, no que se despreza, em puro alvoroço de repulsa grotesca. Ter fome era tão feio como feder.  

O céu continuava se espalhando em beleza cortante; lascivo. Mas ela, a mulher já não se rendia às belezas do ocaso. Ela era já uma mulher que entrou por uma porta da qual não se sai mais incólume. Vários arranhões, como a de uma acidentada, enfeitavam-lhe a testa. Ela já era outra. Ela já era a outra. E no lugar do perfume, sentia uma imensa vontade de feder, como a outra. E nos lábios, parecia querer esfregar, desesperadamente, as mãos, borrando a cara, como essas pedintes loucas, sujas e dementes que andam solitárias em seus monólogos pela avenida à espera do noivo imaginário. Podemos até trombar com elas, embora essas pobres mulheres sempre aparentem invisibilidade aos nossos olhos domesticados à indiferença. 

Naquele segundo que se capta incrivelmente rápido como as asas de um colibri, entendeu que a fome era tão visível. Mas ela não via. Nem seu homem. Tampouco as pessoas da fila do cinema. “Como não ver?”, ela se perguntava. “Como não ver” se a fome era tão feia, asquerosa, nauseante, escatológica? Como podia não ver os trapos sujos e desgraçados da fome? E não era ela arquiteta, mulher sensível, com feeling aguçado para escolher a decoração da história de uma família? E não era ela quem classificava, escolhia e ordenava a aparência dos objetos de adorno? Como pôde passar a existência sem perceber a violência da fome? 

Então isso era ser um homem?  

Sem saber o que fazer com o pensamento no repulsivo e, concomitantemente, chocante, sensibilizou-se com a imagem daquela mulher toda em farrapos. Mas com um turbante, como uma diva, também negra, que tocava piano e tinha a voz mais bonita do mundo. Seu rosto pobre, cansado, envelhecido, com aquela humildade que só os que nada têm guardam. Humildade e solidão. Uma grande solidão. 

Num átimo, foi tirada do momento epifânico pelo relato da outra:  
 – Procuro um caderno. 
A mulher então olhou bem dentro dos olhos da de turbante e questionou:  
– Caderno?  
– É, caderno, a outra respondeu. 
– Mas para que você quer um caderno? 

A outra então se aproximou, tirou o saco de lixo que trazia preso à omoplata –  também dura como a da mulher –, remexeu, remexeu, até que achou duas “raspadinhas”, já gastas, usadas; dessas que, ao acaso, as pessoas compram em lotéricas, como quem lança a sorte em garrafa perdida em alto-mar. Segurou uma em cada mão. E então mostrou, explicando:
– Ei. Eu escrevo. Eu escrevo loteria. 

A mulher achou aquilo estranho. Mas não era um “estranho” de considerar a outra em “devaneios”. Acho estranho porque achou bonito, quase poético a outra eleger um bilhete de loteria seu objeto de escrita, de identificação e compreensão do mundo. Era quase uma constatação infantil, como criança não alfabetizada que quer ler o indicativo luminoso do parque; como o analfabeto que sente por não decifrar o destino letrado na placa do ônibus. 

Voltou ao passado e se lembrou de quando era criança. Devia ter uns quatro, cinco anos. Só sabia desenhar o nome. Certa manhã, na sala, ao abrir o jornal do pai, tentou ler as notícias do dia. Inventava enredos, nomes – tudo em voz alta, como se, de fato, estivesse lendo. E, anos depois daquela primeira descoberta de leitura e representação do mundo, era despertada pela outra, de turbantes, diva perdida na poluição e violência urbana, que escrevia sua má sorte em um bilhete de loteria. 

A singeleza daquela mulher não só lhe importunava, machucava, como incomodava em farpas sua linearidade confortável, pessoa de bens, perfumes e amores.  

O que contava, no segundo singular do encontro ao lixo, era a matemática imponente da presença: naquele mesmo tempo, naquele mesmo espaço, ambas dividiam o lixo. Cada uma com seu propósito, é verdade. Mas o fato é que dividiam o espaço. 

E nessa divisão, a mulher percebeu que a outra era só. Como ela – apesar do novo amor – era também só, pois nunca se sabe quando a vida vai interromper seu destino e empurrar a pessoa ao devaneio, à loucura, à reclusão.  

Quem era aquela estranha? A mulher então perguntou seu nome.  
A outra respondeu: 
– Clara Nunes. Clara Nunes Pereira dos Santos. 

A mulher sorriu. A outra era realmente uma diva – no turbante e no nome. Diva dos orixás. Velha das belezas de Oxum, da pobreza dos descampados, dos desnutridos, dos graveolentes, dos que dormem ao relento, dos que são humilhados pela fome, dos roubados pelos políticos filhos-de-uma-grande-e-doente-puta, dos ignorados pelos transeuntes e felizes espectadores ansiosos nas filas dos cinemas. 

A mulher sorriu. Sorriu porque entendeu que havia horror na pobreza. Mas havia também poesia. Porque a fome é perversa e a solidão enlouquece uma pessoa. Mas, ainda assim, e apesar de todo o disparate de um espelho quebrado, ela, a outra, era o Narciso aberto em flor, em flor e restos de lixo, que refletia à mulher, o desfecho: nessa vida dormimos presos à dimensão do consumo imediato, da felicidade pré-concebida e vendida como líquido em garrafa de refrigerante. 

Naquele segundo a mulher entendeu que a outra lhe ensinava um título que por anos e anos martelou em sua cabeça: “Felicidade clandestina”. Felicidade clandestina então era isso. Não foi a professora pós-doutora em Letras quem lhe ensinara o título, tampouco filósofo, crítico literário, ator, escritor, pensador de qualquer espécie. Era aquela, a outra, quem lhe abria os conhecimentos da alma. E ela entendia que pela porta que havia entrado, não mais se saía incólume. 

Nunca mais
TEXTO DE MARCELE AIRES PUBLICADO NO BLOG "A VEIA NO PULSO" DIA 25 DE JANEIRO DE 2011 EM:
http://aveianopulsoainda.blogspot.com/2012/01/clara-nunes-ou-felicidade-clandestina.html

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