quarta-feira, 22 de junho de 2011

No álbum, figura a rua

A experiência de Nowhereman,
o livro-objeto e
a inserção da obra
nos circuitos ideológicos.

Rafaela Tasca


Esquivei-me várias vezes do abrir o pacote de figurinhas que o artista me enviou. Havia em mim ruídos de medo e desconcerto frente à proposição artística de Nowhereman, pois sabia exigir minha ativação para se completar. Preparei-me para iniciar a ação sobre o objeto e, ao fim do primeiro movimento de abrir e colar figurinhas nos espaços do álbum, fui tomada pela sensação de imersão em um jogo.

Entretanto, Nowhereman vai além da experiência do colecionismo e do lúdico, possibilitada por sua forma “álbum de figurinhas adesivas”. Nowhereman é livro-objeto. É expansão do espaço de arte. É exposição fotográfica itinerante. Um museu-miniatura. Um álbum-tabuleiro. Uma maquete-livro. Um não-objeto[i]. Uma intervenção urbana.  

Criado pelo artista Rubens Pileggi como parte da exposição Cromo Sapiens[1], Nowhereman assume o formato clássico de álbum. Com dimensões de 20x18 cm, contém 27 páginas, em papel couchè e sulfite de gramatura média, a serem preenchidas com 42 fotografias de moradores de rua do centro carioca. Cada figurinha, ou cromo, tem 6,5 x 8,5 cm, fornecida dentro de pacotes lacrados. Em alguns cromos, há trechos da fala do retratado. Na página, eles podem ser afixadas sobre o texto de anúncios imobiliários do centro do Rio. Ou, ao lado da planta baixa de um apartamento. A cada retratado é dada a referência de nome, idade, procedência, tempo como morador, dia e local da “abordagem”.

Fruto da pesquisa do artista com mendigos da região central do Rio de Janeiro, Nowhereman se propõe a uma reforma urbana simbólica que contemple estes “homens e mulheres sem onde, resumidos a um aqui e agora sem esperanças.”, como escreve na apresentação de sua proposta.

Para tal, o artista se vale de um formato tradicional de colecionismo que se dá através de figuras adesivas das mais variadas temáticas, em sua maioria ancoradas nos ideais de herói, dos objetos de consumo venerados ou do ilustre inalcançável. Pileggi também se apropria de um fenômeno editorial brasileiro recente, ocorrido durante a Copa de 2010, quando o conglomerado multinacional Panini lançou um álbum de figurinhas com os jogadores das seleções participantes da competição mundial. Posto que o futebol é febre nacional, as figurinhas igualmente assim foram. Assim, pleno de uma intenção que absorve o formato popular e interativo da natureza dos álbuns, o artista atua às avessas, em outra esfera social, em uma vertente de contra-informação.

O gesto ousado de Pileggi sedimenta um trabalho de arte que opera na fusão de mercadoria e arte, com ênfase no consumo de um objeto pelo público; parte essencial de seu projeto artístico. Em Nowhereman, o artista destitui a metáfora[ii] e acopla à sua proposição a noção de circuito e circulação de informações, nos moldes adotados por Cildo Meireles em Inserções em Circuitos Ideológicos (1970) e Elemento Desaparecendo/ Elemento Desaparecido (2002).

A exemplo da fabricação e comercialização dos picolés proposta por Cildo em Kassel[2], Pileggi também cria um aparato de distribuição de seu produto, o álbum e as figurinhas, que podem ser adquiridos – ou trocadas - em espaços da capital fluminense (uma banca, uma galeria e um museu), ou solicitados para postagem através de email e contato telefônico. Portanto, cria por meio de um impresso industrial, de reprodução e circulação massiva, uma “estratégia de visibilidade” que usa da noção de circuito para dar materialidade e sentido a seu trabalho.

Interessante pensar que Pileggi também é poeta, crítico de arte e escritor. Uma atuação que remonta à familiaridade do artista com o objeto livro, formato de expressiva aparição na arte brasileira, sobremaneira entre os concretos e neoconcretos que tensionaram, por vezes dissolveram, as fronteiras entre artes visuais e literatura. Vide Ferreira Gullar que ao tecer sua análise sobre a obra Bichos de Ligia Clark aponta que o início da participação do espectador nas obras de arte teria origem no livro, “por definição um objeto manuseável[3]”. Neste sentido, Nowhereman passa a uma atuação também no campo do objeto escultórico, embricado ao alargamento conceitual do formato livro impulsionado por Haroldo e Augusto de Campos (Poemóbiles), Ferreira Gullar (Poemas Espaciais), Waltércio Caldas (O Colecionador, Aparelhos, Livro Velásquez e Manual da Ciência Popular)  e, também, de Artur Barrio (Cadernos-Livros e Livro de Carne).

Por fim, Nowhereman segue o curto-circuito das fronteiras e tensionamentos da arte, vida e ação política. E, ao inverter o espelho dos ícones sociais e expor os cão sem plumas[iii] da urbe, o projeto artístico de Pileggi trabalha é com a pólvora, mesmo.




REFERÊNCIAS

ANJOS, Moacir dos. Cildo Meireles: A poesia e a indústria. In: Revista do Programa de Artes Visuais, UERJ, 2004.
GULLAR, Ferreira. Teoria do Não-Objeto. In: Experiência Neoconcreta: momento-limite. São Paulo. Cosac Naify, 2007.
MEIRELLES, Cildo. Depoimento sobre Inserção nos Circuitos Ideológicos. Revista Bravo. Julho/2006.
NETO, João Cabral de Melo. O cão sem plumas. Editora Nova Fronteira, 1984.



[1] O Projeto Cromo Sapiens, com a exposição “Só sonha quem dorme” e o álbum Nowhereman, foi apresentado no Museu do Mundo, cidade do Rio de Janeiro, em Junho de 2011. Blog da exposição: http://figurinhasnowhereman.blogspot.com
[2]Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido consistiu da instalação temporária, coordenada pelo artista, de uma pequena fábrica de picolés em Kassel (incluindo a criação de uma logomarca para a empresa, a aquisição de equipamentos e insumos, e o estabelecimento de relações contratuais com fornecedores e funcionários) e da venda de sua produção em diversos carrinhos que circularam, durante todo o tempo de funcionamento da mostra, nos espaços públicos da cidade.” (ANJOS, Moacir)

[3] “(...) de fato, a origem da participação do espectador na obra não poderia ter sido mais natural e simples: nasceu do livro que é por definição um objeto manuseável.” (GULLAR, Ferreira)


[i]  “Diante do espectador, o não-objeto apresenta-se como inconcluso e lhe oferece os meios de ser concluído.  O espectador age, mas o tempo de sua ação não flui, não transcende a obra, não se perde além dela: incorpora-se a ela, e dura. A ação não consome a obra, mas a enriquece: depois da ação, a obra é mais que antes – e essa segunda contemplação já contém, além da  forma vista pela primeira vez, um passado em que o espectador e a obra se fundiram: ele verteu nela o seu tempo. O não-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como testemunha passiva de sua existência, mas como condição mesma de fazer-se. Sem ele, a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize.” ( GULLAR, Ferreira. Teoria do Não Objeto.)

[ii]Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação, tornam-se um Triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer idéia que você colocar lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de arte. Mas com a platéia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova idéia uma nova linguagem para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora- trabalhar com a pólvora mesmo.” (MEIRELES, Cildo)

[iii] Célebre poema de João Cabral de Melo Neto sobre o Rio Capibaribe e a miséria que acometia os habitantes de suas margens. O “Cão Sem Plumas” foi publicado pela primeira vez em 1950. 

segunda-feira, 20 de junho de 2011

SÓ SONHA QUEM DORME no Museu do Mundo

SÓ SONHA QUEM DORME no Museu do Mundo
Abertura, 17/06/2011















créditos: Roosivelt Pinheiro, Chico Fernandes, Jean Decherry, Rubens Pileggi, Pedro Moreira Lima

+ fotos no álbum de fotos:
https://picasaweb.google.com/pileggisa/SOSONHAQUEMDORMENoMuseuDoMundo?authkey=Gv1sRgCICD8p37gfioJg

X - ação de arte

Evento realizado em um apartamento na Praia do Flamengo, cujo título, CONTRABANDO, me sugeriu traficar um morador de rua para ficar abrigado e dormir, se quisesse, durante os dias da exposição.
10/06/2011



domingo, 12 de junho de 2011

LUIZ CARLOS MARQUES DA SILVA

"e, apontando com o dedo, ele me falava de um lugar chamado o fundo do poço. um lugar sem lugar, porque, aonde quer que fosse, o fundo do poço o esperava à sua frente, e ainda o perseguia. no fundo do poço havia faca, bala, porrada, e o mais que havia, como fome, doença, trapos, era feito nos moldes da falta. quando se livrava aqui de uma delas, era para encontrá-la de novo ali, sem demora, à espera, mas tão às claras que nem emboscada havia. e ele me falava que, no fundo do poço, só havia amizade ao preço de uma guimba de cigarro, de um trago de cachaça, de uma ponta de pão mesmo que dormida, fora disso, sem um preço a ser pago, nada de amizade havia, já que a própria amizade só havia na duração do preço que a pagava, não mais do que isso. era do fundo do poço que ele me falava. e ele me falava que, no fundo do poço, era preciso manter a dignidade, manter a mente em seu devido lugar, saber apanhar sem querer revidar, saber dormir onde quer que fosse (chegando a tanto fazer se seria lá ou aqui que iria sonhar), aprender a se camuflar de fumaça, asfalto, lixo. e, com seu bafo de nicotina e tabaco, acrescentando que cada um tem sua cruz, ele, a dele, eu, a minha, ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contrabandeado para este evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poço, ele me falava."

Alberto Pucheau

sábado, 4 de junho de 2011

Fotos de Urbano Erbiste




X = Luiz Carlos Marques da Silva e Rubens Pileggi da Silva

depoimento da artista Juliana Kase

Olá Rubens,

Aqui é a Juliana do Vitrine Efêmera. Gostei de te conhecer. Te escrevo para contar sobre da minha experiência com o seu projeto Nowheremen.
Você deve conhecer melhor do que eu as propostas de outros artistas que trabalham com o assunto dos moradores de rua. Alguns por um viés
mais estético, outros mais políticos e tantos outros realizando propostas momentâneas. Imediatamente, ao ter contato com seu projeto, confesso que
achei que se tratava de uma abordagem mais antropológica, mas ao ir colando as figurinhas no álbum, me dei conta da potência sensibilizadora da sua proposição.
Admiro o tempo que você dispendeu conversando com eles, assim como me comovo ao obrigatoriamente me ver alisando as faces das imagens que você nos oferece em close.

Seu trabalho é bem sucedido em vários momentos. Primeiro, quando você oferece a compra, a preço módico, o seu álbum, você consegue ativar um prazer pelo colecionismo
e uma recordação de infância que acredito que a maioria tenha tido. Depois, quando você propõe a tarefa de colar as figurinhas, o espectador deve empregar um certo tempo
para realizá-la e consequentemente ler as sucintas informações das legendas. É aí, na legenda, que para mim, está o ponto fundamental do seu trabalho. Enquanto muitos
artistas intentaram dar visibilidade à população de rua, você resgata os nome desses desconhecidos. Penso que o reconhecimento dessas pessoas como indivíduos, a sua singularidade, é mais eficaz que mantê-los apenas como uma massa indiferenciada.

Parabéns pelo projeto! Aguardo o cromo 13!

Abraço,

Juliana

www.julianakase.com