domingo, 29 de maio de 2011

SÓ SONHA QUEM DORME

Só sonha quem dorme: a circulação da vida infame

Só sonha quem dorme, exposição de Rubens Pileggi apresentada na Galeria Museu do mundo, aponta para a afirmação da arte como espaço da vida. Com dois trabalhos instalativos e um impresso, a exposição coleciona histórias, registros e sonhos que desfazem mais que conservam a forma do inventário. O tom aparentemente objetivo dos três trabalhos que compõe a exposição – Só sonha quem dorme, Esses olhos não são meus e Nowhereman – não materializa somente a informação sobre o mundo de “invisíveis funcionais”. Dão igualmente visibilidade à divergência no espaço público da arte. Pileggi apresenta a força da inscrição de imagens que realizadas com a perspectiva da dor do outro são transformadas por uma imaginação reflexiva. Registradas, reiteradas, deslocadas para modos de apresentação e dispositivos diferenciados, Só sonha quem dorme torna reversível o documento em sua condição de prova, pois ele expressa a vida que insiste nos espaços da cidade desamparada. Qual a importância da atividade de colecionar se o que reunimos não afirma o movimento da vida? A indigência pertence à poesia quando ela arrisca a dar brilho ao não ilustre. Estranho brilho fosco de uma poesia que se instala entre as provas da infâmia.
Os retratos, as fichas de catalogação, uma planta baixa, os registros das falas, os cartazes de rua fotografados que aparecem em Nowhereman são signos de um arquivo da infâmia que mostram sua estranha vibração, um alvoroço quieto, quase imóvel. É a vida declarada nesses signos-documentos provenientes do fundo do poço, uma vida vegetal (“a gente não ‘veve’, vegeta”) que restou dos ataques ao organismo já totalmente lesado. A celebridade não está na miséria mostrada, mas na luz que os trabalhos refletem diretamente em nossas vistas. Aqui aparece a engenhosa vivacidade que a obra de arte é capaz de produzir. Em Só sonha quem dorme, Rubens Pileggi colecionou dados, estatísticas, lugares, vozes, imagens, mas sua sensibilidade para o problema social não faz dele um sociólogo. A arte tem sua argúcia própria. É com essa máquina sutil que o pensamento poético se produz e transforma o homem vil em célebre artífice de uma vida possível.
Anunciando a falta de acesso à moradia nas grandes cidades através de “figurinhas” de mendigos, indigentes, desvalidos, Só sonha quem dorme cria um espaço de estranhamento para a arte, o objeto de arte e seu valor de coleção. Esses trabalhos forçam, à visibilidade e à escuta, a imagem e a voz do abandono. Através da estratégia divertida, do passatempo inocente com as figurinhas colecionadas, o impresso Nowhereman de Rubens Pileggi produz um jogo imune a perigos, mas não sem uma dose de crueldade. Outros trabalhos impressos de artistas já investiram na chave da circulação democrática da produção simbólica. Arte Classificada, da dupla Paulo Bruscky e Paulo Santiago, contrapôs a simples informação dos meios de comunicação à forma do atentado poético. Cédula - Zero cruzeiro (Inserções em Circuitos Ideológicos), de Cildo Meireles, uniu a reprodução e a circulação massiva, estratégias do impresso industrial, à questão do valor no sistema de arte. Pileggi articula sua coleção de figurinhas indignas ao ambiente da arte através da multiplicação que retira o valor de objeto único, mas aumenta o vigor da audácia. A grande aposta não é a bolsa de valores, mas o poder da vergonha. O artista arrisca na jogada da circulação democrática do ultraje que, silenciado nas sombras da cidade, pode agora espalhar-se nas mãos de qualquer um. A miséria não é aqui digna de lástima ou pena. Não há nenhum tom de lamentação nesse trabalho engenhoso de Pileggi, ainda que o infortúnio social seja tema de sua angústia artística. Do jogo inocente, resta a potência da visibilidade que atordoa. Afinal, que lugar tem esses esmoleiros, esses sem teto, no ambiente fino da arte? Fantasmas ou pessoas? A imagem manuseada invalida a inocência da atividade. É a voz do mendigo que afirma: “só sonha quem dorme”. Podemos sonhar porque diante da injúria dormimos. A vigília, entretanto, é o que nos resta depois de manusearmos as figurinhas de NOWHEREMAN. Suas imagens e frases, as indicações dos lugares, as estatísticas são provas da indigência, mas acima de tudo esses documentos exprimem a sobrevida que subsiste nos destroços.

Luiz Cláudio da Costa

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